terça-feira, 25 de outubro de 2011

A folha A4 de linhas, dobrada em quatro:

- O que é isto?

- Sr. Sousa: é a minha ideia. É a minha ideia para potenciar a sua cena. A estrela. A sua invulgaridade. Fiz – corrigiu-se, mudou várias vezes a trajectória do olhar – foi um bocado a brincar, não tive grandes ideias. Acho que, sabe… o que aprendi aqui no CAPI, pelo menos, comigo? O que importa mesmo – não interessa mesmo o que é que a nossa invulgaridade pode fazer por nós. Primeiro temos é de, não digo gostar dela, mas temos de aceitá-la.

- Obrigado Samuel.

- Não leia até chegar a casa.

Quinze sessões pelo CAPI adentro e o Sr. Sousa sente-se um estrangeiro maior do que quando começou. É certo que, pelo menos, as viagens de autocarro de regresso, pela noite já noite, são benéficas. Tudo abana e estremece levemente. As rodas no asfalto, a sua cabeça contra o vidro inquieto. O fugir de luzes brancas e amarelas da noite que dançam em padrões que um passageiro cansado escolhe, sempre, ignorar. Lá fora, a escuridão varia em soluços. Pisca, junto ao condutor, o sinal do STOP; STOP. Os lugares escolhem-se dentro do autocarro iluminado e branco. Mas bom o Sr. Sousa sente-se mais estrangeiro agora do que antes pelas simples razões – e será que são tão simples quanto isso; claro, claro que não – E a noite parece gritar naquela sua linguagem de abandono, hoje, entre cada rasto de luz que lhe passa pela face,, a cada curva apertada que fazem por si, a cada paragem onde os alarmes apitam, ritmados, antes das portas se fecharem novamente – o sentimento, o sentimento de ser um estrangeiro no seu próprio corpo é que desde que passou, assiduamente, a frequentar o CAPI, virou de sentir que era o mesmo homem com uma estrela viva na cabeça para a impressão que tinha aprendido algo sobre um novo Sr. Sousa que agora era obrigado a erguer-se. Olhar para um espelho e ver o reflexo falso de um antigo Sr. Sousa, aquele que sempre fora, na verdade, e tomar as rédeas. Como se o melhor de si sempre tivesse tido uma estrela na cabeça; como se fosse natural lidar com toda esta nova manifestação de energia em algo que não era ele. Como se esse seu melhor não existisse, e fosse apenas um papel que – inicialmente – se via a desempenhar até se habituar à sua situação; e depois enfim o sentir fortemente que não se podia fugir a, de facto, mudar por completo. Tornar-se noutra pessoa porque um astro, na sua cabeça, nascera um dia em si e o tornara especial. Sem sombra de dúvida especial, um ser extraordinário, ao contrário do que se convencera, alguém que devia ter mais preocupações do que compreender a beleza do céu num dia limpo, e querer que a sua ex-mulher voltasse para ele – uma pessoa diferente, com um nome diferente; mas ela, ainda assim. Um Sr. Sousa que retirava o sagrado da sua existência ante as pequenas vitórias do dia-a-dia e o saber que ainda tinha sobrevivido como se lhe era esperado; que vitória grande é essa, na realidade, para o homem comum, para todo o homem. Mas não agora, talvez se lhe exigisse um filho. Bons genes.

O agraciar se não os genes forem por um Deus ou deuses dos quais, até então, nunca desconfiara.

Ou simplesmente a hora que chegara tendo sido, até então, enganado por si próprio por nunca ter negado a noção de que não era mais especial do que ninguém. Mas esse estrangeiro continuava a não ser ele; e enquanto fingia ser esse homem chegou a acreditar que o merecia ser, que o conseguia ser: que conseguia ser de facto o homem que estava a fingir que era e no qual não acreditava. É só quando desistimos de uma resposta quando outras perguntas surgem. E, da estrela, passamos para a maior mudança na vida do Sr. Sousa nos últimos meses. É tudo muito para digerir, é tudo muito para me aguentar. Sozinho. Entre um sítio e o outro. Expande-se num tiruriu estridente o alarme das portas do autocarro enquanto ignora a noite, escolhe não ver a estrada, o caminho, e sente a sua estrela, como sempre, a girar sobre si mesma. Não está em nenhum lugar. E torna-se também, mais fácil nas viagens de regresso, sentir que não é nenhuma pessoa.

Starman, a salvar os inocentes desde 2011 com os seus poderes estelares! [Sr. Sousa veja no anexo o seu fato e a palete de cores que escolhi para si] – Gosta da ideia? Eu acho que devia ser um Super-Herói. Os seus poderes, se tem uma estrela na cabeça, devem funcionar à base de plasma e de raios de calor e de fogo. A questão é se acha que consegue ser um super-herói, eu acho que o Sr. Sousa consegue e passo a explicar.

Hoje em dia qualquer pessoa pode ser um super-herói desde que a gente queria fazer o bem. Não interessa ficar rico mas sim sermos felizes, o Sr. Sousa precisa de ser feliz ou de conseguir ser feliz. Eu vejo-o várias vezes triste. As principais coisas que pode retirar do facto de ser super-herói é o sentimento de felicidade e, preenchimento espiritual que vêm do facto de salvar pessoas e querer o bem. Para tentar ser um super-herói tem de treinar bastante, não vou negar. No seu caso não é tanto por artes marciais mas mais pela onda da sua estrela, que é isso que lhe dá os poderes. Em teoria, pode concentrar feixes de energia, cegar pessoas temporariamente, e até poder propulsionar-se pelo ar, o que lhe dá o poder de voo. Sugiro meditação, como assim uma ajuda para aprender a focalizar os seus poderes isto porque vai ter que concentrar-se em melhorar o alcance e concentração dos seus feixes de luz, e quando eu digo super-herói não digo parar assaltos a bancos mas –

O que faz um homem ter medo da vida e perder depois esse mesmo medo? Uma mudança, que criará, a seu tempo, novos e frescos, desconhecidos medos para entreter os homens nas decifrações das linguagens guturais dos seus medos,, insectóides, coriáceos, desconhecidos medos. As consultas com os psicólogos no CAPI ajudam, tentar

A minha lista: coisas para fazer com a sua invulgaridade:

- Poderá ganhar dinheiro no Circo du soleile [sic];

- Ciência para o estudarem;

- se conseguir controlar a sua estrela servir como fonte de energia ou trabalhar numa empresa;

- Não se esqueça que pode sempre trabalhar a part-time ou a full-time no CAPI depois de uma avaliação boa por parte do staff superior recebendo pensão

Nunca vai ficar desamparado!

Lista de Mateus Antão

determinar as origens desses novos medos é, no fundo, um processo conhecido. Terrestre.

Por vezes a chuva cai como martelos e na cabeça do Sr. Sousa aparece uma névoa, um vapor vertical. Por vezes

- …Não, as coisas estão a estabilizar. Estou ainda a ponderar as hipóteses que todos me deram e já sei o que me vai dizer

- Sabe? E nesse caso, já tomou a decisão que quero que tome?

- Subir lá acima e falar nunca foi o meu forte, nunca tive jeito para a coisa, sabe. Mas devo de lá ir.

- Fazia-lhe bem, como bem sabe. Já discutimos que parte do processo consiste em, propositadamente, sair da sua “zona de conforto”, como dizem os americanos, e experimentar coisas novas.

- Eu sei que já não sou a mesma pessoa, mas ainda me sinto para da mesma pessoa, como já lhe disse. E sei que é normal.

- Mas sempre vai hoje? Mas então qual é a sua ou quais são as suas – as suas próprias ideias quanto ao que vai fazer daqui para a frente com a sua invulgaridade?

- Acho que gostava de falar disso consigo na próxima sessão. Hoje vou falar no púlpito.

As coisas tendem a ganhar a sombra de um futuro lido no receio da sua concretização. E depois essa concretização faz-se, e nós continuamos nós, ou aceitamos – cerrando os dentes, e não morrendo. A sombra também passa ou vai passando.Vem o Inverno e as ideias de mudança persistem ou enchem-se de altura nas vagas repentinas que nos assolam de medo e de vontade, e a chuva; a chuva cai, cinzenta, persistente, em vhs. A chuva martela – a chuva martela – contra a permanência xistosa do panóptico abanando as árvores tímidas lá fora. E foram-se há muito as ilusões de cores e claridade no CAPI, há muito os reflexos solares dos crepúsculos. Os casacos e o café quente servem de principal conforto grupal,, saltam os anoraks e os sobretudos, os kispos e os casacos, os corta-ventos e as gabardines, os casacos de cabedal e as canadianas, os blazers, os hoodies. E os ímpares estão sentados descontraidamente cada um em sua cadeira de plástico semi-rígido, de lado, ou com os troncos caídos para a frente e as mãos unidas à frente em forma de prece, ou a agarrarem uma cadeira vazia com uma das mãos, virados para o Sr. Sousa que começa o seu discurso, e fala na necessidade de mudança. Na inevitabilidade da mudança e de como é esse o verdadeiro trabalho contínuo depois da aceitação inicial da invulgaridade em nós e nas nossas vidas estilhaçadas, estilhaçadas porque deixamos de conseguir ver, com nitidez, o nosso reflexo no mundo. O que se perde com a mudança, que parece ser quase tudo o que é essencial, e o que quase nada de bom se ganha enquanto a mudança ainda é uma mudança, e não já nós; resignados, ou mais sábios o suficiente para compreendermos como viver a vida além dela. O tema do discurso não é incomum, no que toca, é claro, ao local onde é praticado;, Nas igrejas pega o homem de Deus nos temas do pecado, amor a Cristo e a Deus, santidade em vida, mistérios da fé – No CAPI, os discursos giram à volta da aceitação, da estranheza perante nós próprios ou perante o mundo que subitamente muda – e, por vezes, para alguns ímpares muda de facto vício, tentação, redenção, e claro sempre as histórias de vida que os membros do CAPI recusam contar em forma de parábola. Mas a sua invulgaridade é, até mesmo para os ímpares do CAPI, das mais incomuns. Não tem qualquer sentido prático que consiga descortinar e, no entanto, é um homem que tem uma brilhante e viva e incrível e bonita e cheia e redonda e autêntica, uma estrela, uma estrela mesmo no topo da sua cabeça. Uma coroa solar, um halo visível. E o homem arrisca-se a tornar-se no receptáculo da estrela, se não tiver a força para sempre, continuamente, exigir ser mais, exigir ser ele.

A chuva tanto escorrega pelas janelas como se atira contra elas, sem mostras de abrandar, e é nesse momento que o único dos psicólogos voluntários do CAPI que nesse dia ainda por lá ficou entra na sala para se servir de chá e de bolachas, que equilibra na mão em quatro rectângulos, formando duas cruzes. Porque a mudança é tão importante quanto a aceitação do diferente, da mudança, e talvez tudo isso seja bom e benéfico, quem sabe. Mas sei que tenho que mudar; sei que tenho… sei que tenho de ser mais.

O suicídio é sempre uma das opções, não é caro ímpar Sousa? Mas afastemo-nos dessa ideia uma vez que estamos aqui para discutir o quinto passo que estou certo que já aprendeu a aceitar, compreender também, e bom vejamos, suicídio, esse riscámos, não queremos ficar com a ideia errada da saída que que se aproxima de nós à velocidade da própria vida; um antepassado meu foi bruxo, morreu na fogueira, pobre diabo, estou convicto agora que também seria um ímpar e o suicídio do espírito estou também convicto que não aconteceu mas, coitado, não teve outro remédio. O Sr. Sousa tem, isto escrevi porque o Sr. Sousa é o centro do universo no qual a sua estrela, agora, gravita, pronta a determinar a mudança do seu próprio mundo apenas por, repare, aceitar a sua própria estrela, a sua própria vida tal qual como ela é, porque convenhamos, em que mudou o que quer que seja quando percebe que o Sr. Sousa continua a ser o Sr. Sousa com, meramente, um novo apêndice luminoso no topo do trono do cérebro? Há ideias que se ruminam numa regurgitação interior perpétua, afaste-se disso: meu caro ímpar, você é tanto ímpar hoje como ontem (metaforicamente falando). Nada, é a minha proposta, nada como o meu antepassado que foi cozido lentamente pelos ares húmidos no Tejo num auto de fé que nunca convertera o demónio que tinha dentro de si, qual seria ele pergunto-me muitas vezes, mas a si digo. Deixe-se estar, deixe. Descanse e faça colecções de gorros, bonés, fedoras, panamás, sombreros, aproveite a sua imparidade física para poder ser o homem que sempre foi tire regozijo no facto de a sua estrela na cabeça poder desaparecer para sempre se não lhe ligar o que quer que seja. Ignore a minha prosa rápida que bem sabe não se coadunar com o meu discurso, uma vez que o corpo envelhece mas a pena continua a querer manter-se jovem nesta ficção pictórica com símbolos que formam significados –

Os aplausos vão ser sóbrios. Ao Sr. Sousa só lhe apetece explodir, numa onda de calor. E o medo que tem de, desta vez, explodir mesmo, o crânio explodir em bocados fluidos de plasma orgânico só lhe aumenta a frustração. Vê-se a dizer Estou com medo; do nada, Estou com medo, uma originalidade num discurso preparado com tópicos escrevinhados na viagem de autocarro da semana passada e um Estou com medo tão primário que lhe arranca da boca todas as outras frases, Estou com medo e isto sou eu esta estrela sou eu e não sei o que é, mas quero explodir, é esta a verdade, ás vezes, ás vezes quero explodir e deixar de me controlar, não ter medo que isto aqui rebente, esta, esta coisa que aqui tenho isto que… não ter medo de inflamar a Terra desde que fui ao médico, e não é isso, diz olhando com força para o médico que lhe retribui o olhar concordando, levantando a caneca de chá enquanto mastiga, Que o CAPI ensina, não é isso que é mesmo importante?, saber quem sou, explorar o que tenho? – eu tenho medo, eu admito que tenho medo, posso rebentar de vez ou, ou posso… posso não sei, tenho medo… ás vezes também tenho medo, porque é uma estrela, é uma estrela mas e se eu tentar e nem – um novo medo aqui, mas as frases já saíram, empurradas pelo arrebatamento que sente no peito , portanto – Sequer rebentar? Não acontecer nada? Não acontecer nada. E depois – e depois? Eu tenho medo – e o Sr. Sousa treme um pouco. Não é o seu corpo. É o próprio Sr. Sousa que treme, o seu corpo encolhe-se. Mas ele treme o suficiente nesse mesmo medo de si próprio.

Para a sala silenciosa que o escuta, mesmerizada agora,, que olha para si e para a sua estrela que gira – parece que gira, gira? – sobre si própria em ondas revoltas de vermelho e amarelos, cada vez mais instáveis – uma explosão aqui e ali à superfície, as mudanças de claridade como a ressonância de fundo do Big Bang num pictograma colorido, a falar através do Sr. Sousa que diz eu quero ver se rebento!. E Jocivalter sorri naquele sorriso meio insolente que os estúpidos têm quando percebem que sabem algo importante que nós não sabemos e bem, com Jocivalter, mascote do CAPI, esse estilo de sorriso é o único com que brinda ou presenteia cada outro ímpar que ainda se digne a conversar com ele e diz olhando para a janela a borbotar água Então porque é que não vai lá fora e explode de vez.

E bem o Sr. Sousa deixa de se encolher e o medo é substituído por uma dúvida e depois olha para cada par de olhos e cada corpo naquela sala pintada por luzes de halogéneo e cada janela e cada porta fechada e ninguém tem uma estrela na cabeça. Ninguém tem uma estrela na cabeça a não ser ele.

Quando se mexe para sair do púlpito várias reacções tomam conta da sala com os membros do CAPI a tomarem a acção sendo que uns saltam das cadeiras de imediato com os braços esticados e gritam “Não, não!”, ou “Pare pare pare!” o psicólogo que se tinha deixado ficar e estava ao pé da mesa dos comes e bebes a enfardar uma bola de Berlim estatela-se no chão entre a porta de saída e a sala e há quem se ponha à frente da porta de vidro verde de braços esticados a abanar a cabeça em não “Sr. Sousa não, Não!”, as cadeiras são atiradas para o chão e os pedidos transformam-se em gritos mas há o mesmo fogo no olhar do Sr. Sousa que tem vivido na sua cabeça e que, até agora, ameaçava consumi-lo. O Sr. Sousa abre a porta verde e entra no jardim e sobe ao panóptico, e os ímpares já não fogem. Congregam-se, à sua volta, no jardim, e a vontade de explodir é cada vez maior, e o Sr. Sousa solta um grito, um grito primário e gutural de quem abandonou as noções da compostura pelas certezas da paixão, um

- HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!

E antes de olhar para o céu e deixar toda a sua estrela extravasar os limites do hospedeiro o seu olhar encontra um Jocivalter, ainda de sorriso composto na cara, aquela merda daquele sorriso insolente de quem sabe que ainda não é hoje que vai morrer, e o Sr. Sousa finalmente solta tudo o que tem para soltar, a estrela enche o jardim e os arredores do CAPI num clarão, sobe ao céu uma coluna de fogo e a chuva pára, e todos os ímpares gargalham em maravilha, enquanto a estrela do Sr. Sousa ascende, ascende aos céus, torna a noite em dia e colore as árvores e os carros e todos os edifícios e o céu de amarelo e branco e os cega depois, por fim, num último clarão de luz, enquanto a noite muda e se afasta, e a estrela do Sr. Sousa cresce, cresce, e cresce, até a sua luz tudo iluminar.